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Inovação Uniemp

versión impresa ISSN 1808-2394

Inovação Uniemp v.1 n.3 Campinas nov./dic. 2005

 

 

Parcerias e inovação impulsionam setor farmacêutico

 

 

AO INVÉS DE SEGUIR IMPORTANDO MATÉRIA-PRIMA E PRODUTOS DOS PAÍSES MAIS INDUSTRIALIZADOS DO MUNDO, OS LABORATÓRIOS BRASILEIROS PASSARAM A SE LANÇAR EM CICLOS PRÓPRIOS DE PESQUISA, DESENVOLVIMENTO E INOVAÇÃO EM MEDICAMENTOS

 

 

por FLÁVIA NATÉRCIA

 

 

O primeiro fitomedicamento 100% nacional, o Acheflan, pomada antiinflamatória lançada pela Aché Laboratórios Farmacêuticos em junho último, marca o início de um novo capítulo da história da indústria farmacêutica brasileira. Nos últimos anos, houve um significativo aumento da produção de medicamentos e, embora os investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) ainda sejam modestos, aumentaram — "e muito" —, considera José Correia da Silva, presidente da Associação Brasileira da Indústria Farmoquímica (Abiquif). Mesmo sem dispor de uma estimativa exata dos recursos, Silva informa que " se trabalha hoje com um valor acima de US$ 200 milhões no setor farmacêutico e acima de US$ 80 milhões na farmoquímica, somente na área de pesquisa e desenvolvimento, desde o início da vigência da nova Lei de Propriedade Industrial", afirma Silva.

Os dados divulgados pela Revista da Indústria Farmacêutica mostram que, entre os anos de 1994 e 2003, os gastos com P&D do setor registraram uma alta acumulada de 1.144%: de R$ 12,3 milhões em 1994 para R$ 153 milhões em 2003. Ao invés de seguir importando matéria-prima e produtos dos países mais industrializados do mundo, os laboratórios brasileiros passaram a se lançar em ciclos próprios de pesquisa, desenvolvimento e inovação em medicamentos. "Depois do advento das patentes na área farmacêutica, é quase uma obrigação que as empresas de médio e grande porte nacionais tenham uma base tecnológica que lhes propicie, pelo menos, inovações incrementais acobertadas por patentes para que sigam sua trajetória ascendente", considera o presidente da Abiquif.

Ainda são mais freqüentes as inovações incrementais baseadas em produtos estrangeiros. Segundo Silva, não somente porque a massa crítica brasileira na área de pesquisa radical é pequena, mas também porque o desenvolvimento posterior, que leve a um produto comercialmente viável, é muito oneroso. Assim, essa "trajetória ascendente" da indústria farmacêutica brasileira pode esbarrar num limite, uma vez que não poderão continuar crescendo com cópias: a necessidade de realizar inovações radicais, aquelas que produzem o rompimento de um paradigma, e não inovações incrementais, que representam cópias com ou sem benefícios em relação ao modelo.

 

 

CONHECIMENTO POPULAR

Essa foi a decisão tomada pelo laboratório Aché no caso do medicamento Acheflan, e cujo desenvolvimento contou com a participação de diversas instituições públicas: Universidade Estadual de Campinas, Universidade de São Paulo, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade Federal de Santa Catarina. Seu princípio ativo, o alfa-humuleno, foi identificado a partir do conhecimento tradicional dos habitantes do litoral de São Paulo. Sabia-se que a erva baleeira, ou Cordia verbenacea, arbusto das restingas, faz cicatrizar feridas e alivia dores. Mas foi preciso que Victor Siaulys, presidente do conselho de administração da empresa, sofresse uma contusão numa partida de futebol em Mongaguá, balneário paulista, para que essa história tivesse início. Vítima de uma lesão no joelho, em 1989, Siaulys experimentou o alívio proporcionado pela garrafada da erva e resolveu investigar melhor seus efeitos terapêuticos. Depois de 16 anos e investimento de R$ 15 milhões, a pomada desenvolvida chegou ao mercado com potencial para se tornar um blockbuster, o que, no jargão farmacêutico, significa um medicamento com potencial de vendas de R$ 1 bilhão.

 

PARCERIA É A PALAVRA-CHAVE

O trabalho conjunto com laboratórios de institutos de pesquisa e de universidades constitui uma alternativa à instalação e à manutenção de custosas estruturas de P&D, como fazem as grandes transnacionais do setor, capazes de trilhar, sozinhas, o longo caminho que vai da descoberta de uma molécula de potencial terapêutico até sua comercialização, que normalmente se estende por anos e custa até US$ 300 milhões. Assim, a palavra-chave para que esse setor tome o impulso desejado é parceria. Para haver inovação radical, é preciso haver infusão de recursos privados. Recursos que possam correr risco. "O governo não tem perfil de investidor de risco e tem de perceber que não pode depender dos próprios recursos para inovar", afirma Antonio Carlos Martins de Camargo, diretor do Centro de Toxinologia Aplicada (CAT).

"Em termos de pesquisa no Brasil, há que se pensar em investimentos de risco, com a participação do Estado em determinados projetos", concorda Silva, da Abiquif. Ele considera, no entanto, que o modelo tradicional de pesquisa gerida pelo Estado, sem fins comerciais, se esgotou. E que o setor industrial, finalmente, percebeu que precisa gerar conhecimento e projetos inovadores para sobreviver em médio e longo prazo.

 

 

Camargo destaca o pioneirismo da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) que, em setembro de 2000, criou dez centros de pesquisa, inovação e difusão. Os Cepids têm como missão produzir pesquisa básica ou aplicada de caráter inovador e têm, também, que transferir o conhecimento gerado tanto para o governo, como subsídios para a elaboração de políticas públicas, quanto para a iniciativa privada, na forma de novas tecnologias. Por último, os centros têm como tarefa viabilizar parcerias com organizações responsáveis pela implementação de políticas públicas e com indústrias e estimular a formação de pequenas empresas que incorporem os resultados das pesquisas.

 

TRABALHO CONJUNTO

Sediado no Instituto Butantan, em São Paulo, o CAT é uma organização multiinstitucional, formada por laboratórios de universidades públicas paulistas — USP, Unifesp e Unesp —, do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares e do Consórcio da Indústria Farmacêutica (Coinfar) — integrado, por sua vez, por três laboratórios: Biolab/Sanus, União Química e Biosintética. Funcionando há somente cinco anos, o CAT, juntamente com o Coinfar e a Fapesp, já obteve o licenciamento de quatro patentes no Brasil e de outras três em outros países (Japão, Estados Unidos e Canadá), referentes a moléculas ou processos. Pelo contrato de licenciamento, assinado no início deste ano, o Coinfar se compromete a financiar os estudos toxicológicos ou pré-clínicos, realizados em modelos animais, e clínicos, feitos com seres humanos.

Até cerca de duas décadas atrás, a maioria dos princípios ativos comercializados pela indústria farmacêutica se baseava em moléculas extraídas de plantas. No entanto, somente uma dentre cada dez moléculas investigadas resulta num medicamento que chega ao mercado. Partindo de toxinas de outros seres vivos, segundo Camargo, são maiores as chances de sucesso. Das patentes obtidas, três são relativas a moléculas de propriedades anti-hipertensivas obtidas a partir do veneno da jararaca, denominadas evasins, sigla para o nome em inglês, endogenous vasopeptidase inhibitor (inibidor endógeno de vaso-peptidase).

Outras duas patentes se referem à proteína lopap, extraída das cerdas da mariposa Lonomia obliqua, com potencial para ser usada no tratamento da trombose. Outra se refere ao que os cientistas batizaram de enpak, sigla para endogenous pain killer, ou seja, analgésico endógeno. Obtida a partir do veneno de outra serpente, a cascavel, nos testes a enpak mostrou ter um poder de analgesia 600 vezes superior ao da morfina. Por último, foi patenteada também uma substância identificada na saliva do carrapato-estrela, a ambliomina-X, de propriedades anticancerígenas, que em camundongos com melanoma levou à remissão completa dos tumores e, em culturas de células, mostrou ser capaz de atingir as células tumorais sem afetar as normais.

 

FINANCIAMENTO E REGULAÇÃO

O Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) lançou, em maio de 2004, o Pró-Farma — Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia Farmacêutica. De acordo com o gerente do Departamento de Produtos Químicos e Farmacêuticos do BNDES, Pedro Lins Palmeira Filho, o programa talvez já figure entre os que encontraram a maior receptividade no banco. Isso porque, há apenas pouco mais de um ano, 34 projetos já compõem uma carteira que Palmeira considera "substancial". Nela estão computadas todas as operações que já estão no fluxo de trabalho do BNDES, mas há desde projetos que estão na fase de "perspectiva" até aqueles já contratados e com desembolso da verba. Em julho, em números totais, o volume de investimentos somava R$ 1,1 bilhão, com financiamentos previstos pelo BNDES de R$ 515 milhões.

 

 

Em março deste ano foi assinado o primeiro contrato de financiamento do Pró-Farma: a empresa Nortec Química S.A., que tem sede em Xerém (RJ), receberá do banco 87,9% dos 6,8 milhões de que necessita para concluir o desenvolvimento de três remédios a partir de princípios ativos extraídos de plantas nativas. A Nortec realiza trabalhos em colaboração com diversas universidades dos estados do Rio, São Paulo e Rio Grande do Sul. Tem, em seu quadro de funcionários, cerca de 40% de profissionais de nível superior, inclusive mestres e doutores. Com esse perfil, a empresa pôde desenvolver e integrar mais de 50 processos competitivos no mercado para moléculas de ação terapêutica.

O programa foi lançado em maio de 2004, com o objetivo de estimular as atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação pela indústria nacional e, conseqüentemente, levar à produção de tecnologia nacional que proporcione a substituição de importações. No ano de 2004, o déficit comercial do setor farmoquímico foi de US$ 2,4 bilhões. Grande parte dele vem da importação de princípios ativos. "O Pró-Farma não apóia somente a produção de medicamentos, como também apóia o desenvolvimento do 'elo a montante' da cadeia farmacêutica, ou seja, a produção de princípios ativos", afirma Palmeira. "O BNDES entende que a cadeia farmacêutica nunca vai se enraizar de vez no país se não houver uma produção razoavelmente forte de princípios ativos".

No entanto, conforme adverte Palmeira, o financiamento do BNDES é apenas uma parte da política industrial. "Outras questões paralelas têm importância igual ou até, às vezes, maior que a existência de uma linha de financiamento", pondera. Entre elas, o Fórum de Competitividade da Cadeia Farmacêutica, que diz respeito ao Ministério do Desenvolvimento; as compras governamentais; a lei de inovação, cuja regulamentação parece próxima. "Mas é óbvio que a existência de uma linha de financiamento induz o investimento, o que também é um efeito desejado de um programa desse tipo", conclui.

Segundo Palmeira, infelizmente a divisão geográfica da carteira de operações do BNDES reflete a distribuição da indústria farmacêutica no Brasil. "Praticamente 70% das empresas estão em São Paulo, então é lá que se concentram nossas operações". Mas ele afirma que "alguma coisa" se destina a outros estados: Goiás, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. O gerente acrescenta que o estado paulista tem a maior capacidade instalada para pesquisa e maior integração do setor público com o privado, em parte devido à atuação de entidades como a Agência de Gestão de Inovação Farmacêutica (AGIF), núcleo do Instituto Uniemp destinado a fazer a ponte entre a produção do conhecimento, sua aplicação e sua transformação em produtos ou tecnologias comercializáveis.

A Agif foi criada em 2002, em parceria com o CAT e com apoio da Fapesp. Seus principais parceiros na iniciativa privada são o Coinfar e os laboratórios Cristália e Aché; dentre as instituições públicas, há o Instituto do Coração, a Unicamp, a USP, a Universidade Federal do Ceará e o Instituto Butantan. O trabalho é pró-ativo, isto é, a Agif está sempre em busca de novidades que possam render frutos na área de saúde. De acordo com a médica Regina Scivoletto, diretora da agência, atualmente há dez projetos sendo realizados, todos destinados a gerar inovações radicais. A maioria dos produtos está na fase de ensaios pré-clínicos, mas alguns produtos já se encontram em estudos clínicos. "Dentro de um ano, devemos entrar com o pedido de registro do primeiro produto", conta Scivoletto.

 

 

Os especialistas concordam a respeito da importância do estabelecimento de marcos regulatórios, entre os quais se destacam: a Lei de Propriedade Industrial, de 1996, que estabeleceu mecanismos de proteção e patente; o estabelecimento de regras para a realização de ensaios clínicos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa); a Lei de Inovação, que aguarda regulamentação. De acordo com o presidente da Abiquif, a Anvisa estabeleceu exigências que obrigam os laboratórios farmacêuticos a ser muito mais criteriosos em suas aquisições de princípios ativos e elevou os requerimentos para a produção farmoquímica no que tange ao conhecimento das moléculas já produzidas e a busca de rotas e processos para a produção de moléculas novas. "Por outro lado, abre-se uma perspectiva muito interessante para moléculas, que exigem padrões de produção mais sofisticados e procedimentos operacionais de acordo com normas e exigências das empresas multinacionais, colocando o Brasil na rota de possibilidades de suprimentos a preços condizentes e competitivos com os parceiros europeus e americanos", diz Palmeira.

 

 

"Na área de P&D, a promulgação da Lei de Inovação é o grande fator de impulso, visto que parte ponderável da lei versa sobre a interação das universidades com a iniciativa privada, a remuneração dos institutos de pesquisa e dos pesquisadores", diz Silva. A Lei de Propriedade Industrial, número 9279/96, entrou em vigor em maio de 1997, um ano depois de aprovada mas não resolveu todos os problemas. "Existe ainda a necessidade de regulamentação da Lei de Inovação, tanto para o incremento de atividades indústria-universidade, como também para implementação da política industrial e de comércio exterior, desonerando os investimentos e incentivando a exportação", afirma Silva.

 

ASSOCIAÇÃO COM INICIATIVA PRIVADA

A resistência por parte dos pesquisadores à associação com a iniciativa privada vem caindo, e a percepção da importância do setor, por parte do governo, se vem aguçando e se transformando em ações concretas, embora as iniciativas sejam, em geral, consideradas tímidas. Silva destaca o advento da política industrial e de comércio exterior que elegeu o setor farmacêutico/farmoquímico como uma das áreas a serem incentivadas, o que deflagrou uma série de ações que têm dado impulso ao segmento.

Para que a biodiversidade brasileira seja melhor aproveitada pela indústria, Silva defende a necessidade de um marco regulatório, que separe o que é fantasia sobre ela e qual a realidade científica, e que se propicie também a exportação do produto. Além disso, ele defende a necessidade de reavaliar os centros de certificação e validação para as pesquisas pré-clínicas e clínicas, o que é fundamental para obter a credibilidade internacional necessária. Ele considera como setores estratégicos a farmoquímica — "dado o enorme déficit da balança comercial e a deplorável dependência do país em termos de aquisição de princípios ativos" — e a fitoquímica, para o aproveitamento de nossa exuberante flora, como áreas prioritárias e/ou estratégicas para o país. Uma das conseqüências positivas de tal política seria o maior aproveitamento dos pós-graduandos, "talvez a única saída para o atual represamento de talentos", nas palavras de Silva.

 

 

INTERESSE DE MULTINACIONAIS

O futuro é promissor. Segundo João Sanches, diretor de comunicação corporativa da Merck Sharp e Dohme, a empresa vem analisando, nos últimos anos, as pesquisas realizadas no Brasil, relacionadas às linhas de medicamentos por ela desenvolvida em nível mundial. Em fase pré-clínica, a Merck investiga os efeitos de antibactericidas em doenças como artrite, aterosclerose, câncer, doenças cardiovasculares, diabetes, glaucoma, imunologia, insônia, osteoporose, dor, urologia, doença respiratória, vacinas. Em fase I, há medicamentos contra aids, artrite, câncer, glaucoma, obesidade, osteoporose, dor, Parkinson, incontinência urinária. Em fase II, substâncias contra artrite, aterosclerose, câncer, esclerose múltipla, obesidade, derrame, diabetes, uma doença psiquiátrica e uma respiratória, além de uma vacina para HIV e uma vacina pediátrica. Por último, em fase III, encontram-se produtos contra o câncer de colo de útero, diabetes, insônia e uma vacina contra rotavírus e contra o herpes zoster.

O portfólio variado faz da empresa um parceiro potencial de grande valor nesse momento de virada da indústria farmacêutica nacional. "No Brasil, também buscamos investir em pesquisas. Apenas em 2004, investimos mais de US$ 5 milhões em estudos clínicos, com 6,5 mil pacientes, em 32 estudos de 41 centros diferentes. Trata-se do maior investimento entre as indústrias farmacêuticas no Brasil e o terceiro da Merck no mundo", afirma Sanches. Entre as expectativas que a empresa alimenta com relação ao mercado nacional, a Merck aposta na instalação de um verdadeiro parque de biotecnologia no Brasil.