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Inovação Uniemp

versão impressa ISSN 1808-2394

Inovação Uniemp v.1 n.3 Campinas nov./dez. 2005

 

 

O potencial de aproveitamento da energia da biomassa

 

 

MANOEL REGIS LIMA VERDE LEAL

 

 

A biomassa foi, durante milênios e até um passado relativamente recente, a grande fonte de energia primária da humanidade. Na sua forma forma vegetal — a mais importante —, nada mais é que um artifício da natureza para armazenar a energia solar: as plantas, através da fotossíntese, combinam o dióxido de carbono do ar e a água do solo para produzir carboidratos de vários tipos, que constituem os tecidos vegetais e têm um razoável valor energético (ao contrário de seus formadores — CO2 e água).

Somente no último quarto do século XIX a biomassa foi ultrapassada pelo carvão e depois, já no século XX, pelo petróleo. Ela ainda é a principal fonte de energia primária em muitos países em desenvolvimento (94% em Uganda). No Brasil, ela reinou até a década de 1970 e representa, ainda hoje, quase 30% da energia primária produzida, nas formas de lenha (ou carvão vegetal) e produtos da cana-de-açúcar. Esse valor é significativo uma vez que a energia hidráulica, nossa principal fonte de geração de eletricidade, contribui com apenas 14%.

Os cientistas e técnicos dividem a biomassa energética em dois grandes grupos: biomassa tradicional (essencialmente lenha e outros resíduos naturais) e biomassa moderna (biomassa produzida com tecnologias adequadas, como florestas plantadas, cana-de-açúcar). Em nível mundial, essa forma de energia participa com cerca de 11% na matriz de energia primária; mas, quando se faz a separação acima, a biomassa moderna representa apenas 2% dessa matriz.

O esforço de desenvolvimento tecnológico é centrado na biomassa moderna, enquanto a biomassa tradicional é preocupação dos ambientalistas e sociólogos, pois está associada ao fornecimento de energia para as camadas mais pobres do planeta (às vezes a única forma de energia disponível para essa faixa de população) e é explorada, normalmente, de forma predatória e não-sustentável. Esse esforço é distribuído entre duas rotas principais para conversão de energia primária contida na biomassa, em formas secundárias utilizáveis: geração de energia elétrica e produção de combustíveis líquidos. Na primeira alternativa, é recomendável que se utilize o conceito de cogeração e que se produza calor de processo associado com a geração de energia elétrica.

A geração de energia elétrica a partir da biomassa já é uma realidade em importantes setores onde significativo percentual da demanda de energia elétrica das plantas industriais — no sucroalcooleiro (100%) e o de papel/celulose (50%) — são supridos pelo bagaço e a lixívia negra/resíduos florestais, respectivamente. As tecnologias para isso estão amplamente desenvolvidas e em estado avançado de maturidade comercial, utilizando a combustão direta da biomassa em fornalhas adequadamente projetadas e construídas. Porém, a eficiência energética dessa modalidade de uso da biomassa pode ser aumentada significativamente se, ao invés da queima direta, a biomassa for submetida inicialmente a um processo de gaseificação, e o gás produzido for utilizado em um ciclo combinado de geração de eletricidade, através de um conjunto — turbina a gás/caldeira de recuperação/turbina a vapor. Esta alternativa, que poderia quase dobrar a energia elétrica gerada por uma certa quantidade de biomassa, quando comparada com a combustão direta está tecnicamente próxima e economicamente distante de conseguir um lugar no mercado de energia.

Até na escala de planta-piloto o desenvolvimento já está em um nível muito satisfatório, mas o salto para a escala comercial está difícil de ser viabilizado devido, principalmente, aos vultosos investimentos necessários para implantar uma planta comercial ou mesmo de demonstração. Talvez o recente ressurgimento do interesse e investimentos no desenvolvimento da gaseificação do carvão (como uma forma de reduzir as emissões de CO2 na geração de eletricidade) venha ajudar a tecnologia de gaseificação de biomassa/ciclo combinado a ocupar o lugar que merece na geração de energia elétrica com fontes renováveis.

 

COMBUSTÍVEIS LÍQUIDOS

Na geração de energia elétrica de forma renovável, a biomassa enfrenta a concorrência de várias alternativas, igualmente renováveis, como as energias eólica, solar, marés, geotérmica e pequenas hidroelétricas. Porém, para a produção de combustíveis líquidos renováveis a biomassa concorre quase sozinha e, por isso, essa rota de uso da biomassa vem ganhando importância em P&D sobre a rota de geração de energia elétrica.

As principais alternativas de fabricação de combustíveis líquidos, para transporte principalmente, a partir da biomassa são:

- Extração e fermentação de açúcares contidos em vegetais como cana-de-açúcar, beterraba e sorgo sacarino, produzindo etanol.

- Extração e sacarificação do amido de vegetais como o milho, trigo e mandioca, seguida de fermentação dos açúcares resultantes, produzindo etanol.

- Extração e transesterificação de óleos vegetais de matérias-primas como a soja, mamona, dendê, girassol, amendoim e outros, produzindo biodiesel.

- Pirólise de materiais lignocelulósicos, como madeira e resíduos agrícolas, produzindo óleo pirolítico.

- Hidrólise de materiais lignocelulósicos, como madeira e resíduos agrícolas, seguida de fermentação dos açúcares produzidos, produzindo etanol.

- Gaseificação de materiais lignocelulósicos seguida de processos catalíticos de conversão do biogás para combustíveis líquidos; etanol ou metanol pode ser produzido.

Das alternativas acima, as três primeiras já chegaram ao estágio comercial e as duas últimas vêm recebendo grandes quantidades de recursos financeiros para P&D devido à enorme disponibilidade de materiais lignocelulósicos na forma de resíduos agroflorestais a baixo custo.

É importante salientar que mais de 80% dos quase 40 bilhões de litros de etanol, produzidos anualmente no mundo, tem a cana-de-açúcar e o milho como matéria-prima. No Brasil, o etanol de cana-de-açúcar já é produzido a um custo médio estimado em cerca de US$ 0,18/litro, o que o torna competitivo com a gasolina, desde que o preço do petróleo não caia abaixo de US$ 25 o barril. Mesmo com esse nível de competitividade, é preciso continuar com programas de P&D buscando reduzir mais os custos e os impactos ambientais, antevendo que o álcool tem uma posição de destaque no rol de candidatos à substituição dos combustíveis fósseis e o Brasil deverá estar preparado para ocupar os espaços que se abrirão no mercado mundial. Imaginando-se que o álcool venha a substituir 10% da gasolina consumida no mundo, a números de hoje, isto representaria uma demanda de cerca de 130 bilhões de litros de álcool por ano, ou seja, mais de três vezes a atual produção mundial e 8 vezes a do Brasil; nota-se que essa é uma meta modesta para as necessidades de um mundo que precisa reduzir as emissões de dióxido de carbono, e outros gases de efeito estufa, de um modo significativo.

 

 

O biodiesel tem ainda um longo caminho a percorrer antes de chegar ao nível de competitividade gozado pelo álcool nos dias de hoje, mas ele também terá sua oportunidade de contribuir para aliviar os impactos dos combustíveis fósseis nas mudanças climáticas globais.

 

INOVAÇÃO AGRÍCOLA

Em se tratando de biomassa, a inovação tecnológica deverá ocorrer não apenas nos processos de conversão mas, principalmente, na área agrícola. Nesta merecem destaque, o desenvolvimento de novas variedades de plantas, melhorias nas práticas agrícolas e nas técnicas de colheita, onde a mecanização é uma tendência, na adubação, no controle de pragas e doenças e na redução e mitigação dos impactos ambientais.

Em resumo, a biomassa dificilmente conseguirá substituir o petróleo, e muito menos todos os combustíveis fósseis, mas tem um enorme potencial de auxiliar na redução das emissões de gases de efeito estufa, no aumento da segurança energética de cada país e no aumento da oferta de empregos e renda no meio rural. A transição da cultura de biomassa/alimento para biomassa/alimento+energia, para ser bem sucedida, vai requerer muita criatividade e investimentos em P&D, seja para reduzir os custos das matérias-primas e dos processos de transformação, seja para reduzir e mitigar os impactos sócio-ambientais do aumento de áreas cultivadas, de forma a garantir um desenvolvimento sustentável.

 

Manoel Regis Lima Verde Leal é pesquisador associado do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe) da Unicamp.