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Inovação Uniemp
versão impressa ISSN 1808-2394
Inovação Uniemp v.2 n.1 Campinas jan./mar. 2006
O potencial da indústria cinematográfica no Brasil
ANDRÉ KLOTZEL
O cinema e o audiovisual são atividades em expansão constante no mundo. A multiplicação dos meios pelos quais se veiculam sons e imagens, como DVD, TV aberta, por satélite, cabo, internet, celular, tornam sua presença cada vez maior e mais importante. O chamado entertainment business que inclui a música, as histórias em quadrinhos, bonequinhos infantis, etc, e onde o audiovisual é talvez a parte mais significativa representa uma das maiores pautas de exportação dos EUA.
Paralelamente, a inovação digital na captação e reprodução de imagens moderniza e barateia os custos da produção audiovisual, universalizando o acesso a alguns dos meios tecnológicos e, com isso, possibilitando o aumento da produção. Mesmo assim há um déficit de produtos audiovisuais é um cálculo difícil, mas é corrente que a demanda é maior que a oferta e isso faz com que as chamadas bibliotecas de títulos, ou filmes de acervo, cada vez se valorizem mais.
Se os novos meios de veiculação e produção tornam os produtos audiovisuais mais acessíveis e presentes às pessoas, vem somar-se a isso ainda a tendência ao aumento do tempo disponível para lazer e consumo na sociedade moderna.
Essa presença crescente do audiovisual significa um aumento da importância econômica direta da atividade, e também da importância estratégica. O poder da identificação e emoção e uma certa capacidade de "fazer a cabeça", são uma forma que acaba por alavancar toda a indústria norte-americana, ao propagar o american-way-of-life e divulgar seus produtos de consumo. Trata-se de uma convivência do pensamento cultural/artístico com o pragmatismo dos interesses econômicos uma característica fundamental do cinema, e do próprio sucesso dos EUA como nação. Além disso, não se deve desprezar a grande importância política, de informação e formação cultural, que se soma à relevância da atividade.
O cinema, entre as diversas formas de produção audiovisual, é considerada a mais nobre, por ser a mais cara e elaborada. Nos tratados de comércio mundial, filmes que podem ser considerados produtos industriais (indústria cinematográfica) não podem ser taxados para importação, pois são classificados como se fossem obras intelectuais. Por esses preceitos, não se estaria importando um objeto no qual existiu gasto de matéria-prima, como no caso de um automóvel, e sim uma matriz (a cópia do negativo) que teria o mesmo tipo de valor que o texto de um livro, a partitura de uma música, ou seja, algo imaterial.
É dentro dessas regras que as diversas cinematografias nacionais concorrem com a indústria internacional. Indústria internaciona,l neste caso, é quase um eufemismo dos EUA, que detêm mais de 80% do "PIB mundial de cinema" e tem o maior mercado interno do mundo, avesso a filmes estrangeiros.
Um filme brasileiro, cujo custo médio é cerca de R$ 3 milhões, entra no mercado para concorrer com um filme norte-americano que chega ao Brasil a custo zero, pois já foi pago no próprio território nacional deles. É como se imaginássemos que qualquer indústria brasileira pudesse sobreviver competindo com produtos não-taxados e sem custos de fabricação. Seria mais ou menos o mesmo que o computador fabricado no Brasil ter que competir com uma fotografia do computador fabricado fora.
Diante desse conjunto de circunstâncias, os países desenvolvidos fazem questão de implementar políticas para a sobrevivência do cinema. Tem-se em consideração que algo que tem um poder simbólico e capacidade de multiplicação tão grande, não pode ser consumido passivamente por razões econômicas, culturais e políticas. Mesmo que seja para manter a atividade sem auto-sustentabilidade, ela é considerada essencial. E todos os países que têm cinematografia, com exceção dos próprios EUA e alguns países asiáticos (notadamente Índia), têm subvenção estatal direta ou indireta; ao contrário, os países subdesenvolvidos não podem se dar ao luxo de manter uma política para o setor.
No Brasil, o cinema nacional chegou a ocupar mais de 30% do mercado interno durante a década de 1970 inteira e início dos anos 1980. Em seguida ocorreu uma queda e, depois, um desaparecimento abrupto da atividade no início dos anos 1990, com o desgoverno Collor, até ir ressurgindo e começar a ocupar espaço mais significativo neste início de milênio. Chegamos à faixa dos 10% de ocupação, tivemos um pico de 23% em 2003, 15% no ano seguinte e, em 2005, deve ficar mais ou menos nos 10%.
Os atuais índices estão longe de algo que pudesse se assemelhar a uma perspectiva de auto-sustentabilidade. Mas, ao contrário da maioria dos países, temos o privilégio de almejar a ter um cinema nacional vigoroso. O Brasil é o décimo mercado de cinema em termos de arrecadação e o sétimo em termos de público. E isso porque temos um péssimo índice de salas por habitante (aproximadamente 1 sala para cada 100 mil habitantes; nos EUA há 1 para 10 mil; a Argentina tem 1 para 40 mil; e o México, 1 para 35 mil). Seria um mercado muito maior, talvez o dobro, se levarmos em conta o diagnóstico de potencial de crescimento que as multinacionais de exibição fazem.
Uma política para o cinema deve levar em conta sua complexidade em todos os elos da cadeia, a começar pela produção, que requer tecnologias e mão-de-obra sempre atualizadas, com equipamentos para filmagem, efeitos, finalização, laboratórios. Mas além da produção, a atividade precisa se articular nos segmentos da distribuição e exibição em salas de cinema e em outros veículos. Exibidores são empresários que dependem de um fornecimento de muitos filmes, de forma constante e regular ao longo do ano, e quem pode lhes fornecer isso é o distribuidor. No país, há quatro grandes escritórios de distribuição que representam as principais empresas norte-americanas: Fox, Uip, Columbia, Warner.
Evidentemente, o cinema brasileiro tem que se defrontar com essa realidade e buscar uma forma de nela se inserir. Uma política que atue levando em conta a complexidade de todos esses parâmetros, tem que ser pensada em médio prazo, numa atuação regular de implantação da atividade. Há muitas iniciativas dos governos e órgãos públicos buscando essa atuação política mais ampla, mas a única forma de consenso é o fomento à produção. Vide o recente caso da Ancinav.
Dos mecanismos de fomento hoje existentes, os mais importantes são dados à produção através da renúncia fiscal (Lei do Audiovisual art.1, art.3 e Lei Rouanet). Nos últimos anos, o gasto pelo Estado com toda atividade gira na casa de uns R$ 150 milhões ao ano. Isto possibilita a produção e o lançamento de um pouco mais que 30 filmes de longa-metragem contra uns 250 títulos vindos dos EUA ao ano. O total do que é investido, equivale a uns US$ 60 milhões e, para se ter uma idéia, US$ 60 milhões é precisamente o custo médio de um filme de estúdio norte-americano (não dos filmes independentes, que são mais baratos). Ou seja, um filme médio norte-americano custa o equivalente ao valor gasto em um ano inteiro de produção de cinema no Brasil! Por aí se tem uma noção do tamanho do jogo.
Mas toda a política que se faz para o cinema nacional, principalmente o fomento, vem revestida por julgamento de valores morais, sempre com forte amplificação e repercussão pública. Ora há um sentimento ufanista em relação ao cinema brasileiro que o vê à altura da melhor música e futebol do país ora se propaga a idéia que os cineastas são uns "mamadores-de-têtas", à altura de corruptos de CPIs. Vêm à tona sentimentos de amor e ódio. Isso pode ser mais facilmente compreendido ao pensarmos na identificação que o cinema causa: quando se assiste a um mau filme brasileiro, o sentimento de revolta é muito maior do que quando se assiste a um mau filme qualquer, de outra nacionalidade, e evidentemente o regozijo, no caso oposto, é maior também.
Tais fatores subjetivos só vêm reforçar a importância do cinema brasileiro, e devem ser tomados como elogio. Mas, freqüentemente, esses sentimentos representam o maior temor de quem está seriamente envolvido nas lides cinematográficas: estamos sujeitos a campanhas públicas em que somos incensados como heróis de retomadas do cinema, da mesma forma que linchados como escória desonesta. Nenhuma das duas afirmações é verdadeira, evidentemente, mas é preciso esclarecer essas circunstâncias para que alguma objetividade prevaleça, quando for necessário.
O cinema, como atividade industrial que tem conteúdo cultural, é a conciliação do pensamento objetivo da indústria, com o subjetivo da criação artística. Ao se falar em políticas para o cinema, é preciso também lidar com os eventuais conflitos do universo subjetivo da paixão pelo cinema, com a objetividade dos argumentos.
André Klotzel é cineasta, diretor dos longas-metragens A marvada carne, Capitalismo selvagem e Memórias póstumas.