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Inovação Uniemp

versão impressa ISSN 1808-2394

Inovação Uniemp v.2 n.3 Campinas jul./ago. 2006

 

 

Silvio Meira

 

Recife abriga centro de referência em tecnologias de informação

 

 

por PATRÍCIA MARIUZZO

 

 

CRIADO PARA SER UMA PONTE ENTRE MERCADO E ACADEMIA, O PROJETO CONTEMPLA UM PROGRAMA DE INCUBAÇÃO DE EMPRESAS E AINDA SE ENGAJA EM INICIATIVAS PARA O DESENVOLVIMENTO REGIONAL

No século XVII Recife era uma das principais cidades comerciais do mundo. Através do porto da cidade a produção de açúcar do Nordeste escoava para a Europa. Boa parte dos vestígios arquitetônicos daquela época está concentrada no Bairro do Recife. Instalado num dos 236 edifícios tombados pelo Iphan está o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife — c.e.s.a.r, sigla grafada dessa forma por seu cientista-chefe, Sílvio Meira. Trata-se de um centro de referência no desenvolvimento de tecnologias de informação e comunicação (TIC) no Brasil, criado em 1996, com uma carteira de clientes que inclui hoje empresas como Motorola, Siemens, Itautec e IBM, que busca agora se inserir no cenário internacional. Recentemente, o c.e.s.a.r sediou o Sun Tech Days, resultado de uma parceria com a Sun Microsystems. É o evento mais importante na área de desenvolvimento Java na América Latina, que ocorreu no dia 11 de abril em 12 cidades brasileiras simultaneamente. "Não é porque somos periferia que não somos conectados. Na periferia, tudo é mais difícil, mas tudo é mais possível", diz ele, que criou o c.e.s.a.r para ser uma ponte entre mercado e academia e servir de base para criação de empresas inovadoras. O projeto contempla um programa de incubação de empresas e ainda se engaja em iniciativas para o desenvolvimento regional de Recife. Nesta entrevista Meira fala sobre a dinâmica do c.e.s.a.r e sobre os impactos de leis oficiais sobre áreas como inovação e mercado da informática, entre outras.

O senhor chama o c.e.s.a.r de "empresa intermediária", "fábrica de empreendimentos", que não tem vínculo institucional com a universidade, mas que também não é uma empresa que opera para gerar lucro. Como se chegou a esse modelo de governança autônoma?

Silvio Meira Na criação do c.e.s.a.r discutimos a possibilidade de criar uma instituição que rompesse com o status quo, com um modelo de negócios onde as perguntas do mercado [que têm que ser entendidas por vendedores...] são mais importantes do que as respostas da academia e que exigem capacidade de entrega de soluções efetivas [e não de protótipos de laboratório]. Tínhamos que ter processos, gestão e, principalmente, trabalhar com noções muito bem entendidas de especificação, tempos e custos, elementos com os quais teríamos muitas dificuldades de operar dentro do contexto da universidade, cujo papel fundamental ainda é a formação de capital humano, eventualmente subsidiado por atividades de pesquisa e cujos processos têm que, necessariamente, se orientar para tal. De mais de uma forma, o c.e.s.a.r desenha soluções [e às vezes, negócios] e tem que se redesenhar, permanentemente, para atendê-los. As universidades têm uma dificuldade muito grande em se redesenhar com freqüência.

Esse modelo adotado pelo c.e.s.a.r enfrenta algum tipo de oposição?

Meira O c.e.s.a.r era, e, na minha opinião, ainda é, um centro de inovação e empreendedorismo que tem que se relacionar com clientes, parceiros, colaboradores, investidores, competidores, além, é claro, com academia e governo, numa dinâmica do mercado que exige uma instituição completamente independente da universidade. Por causa disso, sempre enfrenta algum estranhamento das forças estabelecidas, mas isso é parte da história de qualquer instituição inovadora, não é preciso nem mencionar exemplos. Fizemos o c.e.s.a.r sem fins lucrativos porque queríamos construir uma ponte entre mercado e academia, que pudesse pensar no ecossistema e não na remuneração de acionistas. O principal papel da instituição era, e ainda é, servir de base para a criação de empresas inovadoras, baseadas no ecossistema local e com o capital humano e de pesquisa aqui desenvolvida, para criar novas e mais sofisticadas possibilidades de desenvolvimento local e regional.

 

 

Qual é a dinâmica de funcionamento do c.e.s.a.r? Quais são os seus parceiros?

Meira O c.e.s.a.r vende inovação no mercado, tentando para isso captar projetos complexos, críticos, que ofereçam oportunidade para inovar, entre empresas que têm que competir no mercado nacional ou internacional. Um dos nossos motes poderia ser o de Peter Drucker... "acreditamos que a inovação é a única fonte de aumento de competitividade"... que tentamos seguir à risca. Captamos projetos, desenvolvemos soluções, quando possível agregando elementos inovadores, tentamos generalizar essas soluções para problemas correlatos, em outras empresas ou em nichos de mercado, saímos para vender isso como produto, serviço ou uma combinação dos dois. Quando sabemos vender bem e estamos ganhando com isso, quase sempre é hora de juntar o pessoal que está fazendo isso dentro do c.e.s.a.r a parceiros externos, de tecnologia, negócios e investimento e formar, fora dele, um outro negócio, ajudando a aumentar a diversidade institucional na região.

Nossos parceiros são os clientes, outros centros de inovação, empresas do Porto Digital, as universidades ao nosso redor ou, às vezes, longe daqui, grandes empresas de tecnologia, fundos de investimento... uma miríade de outros atores. Ninguém faz nada sozinho, muito menos inovação.

O c.e.s.a.r optou por desenvolver softwares com código-fonte fechado, quando existe uma tendência em abrir o código-fonte. Outras empresas dentro do Porto Digital fizeram esta opção. Qual a razão da opção pelo código fechado? Ter a Microsoft como um parceiro limita o investimento do Centro em soluções com código aberto?

Meira O Centro não fez uma opção excludente, e desenvolve os dois estilos e nos dois estilos. Muitos dos nossos clientes querem soluções fechadas e outros código aberto. Fazemos os dois e, quando podemos escolher nós próprios, ou quando podemos aconselhar, preferimos o modelo aberto. Aberto, aqui, quer dizer muito mais do que a licença do software, está ligado à formação de comunidades, ao processo de desenvolvimento, muito mais do que é percebido pelo tipo de licença do software.

Em conjunto com Jones Albuquerque, da UFRPE, e uma legião de assistentes, estamos lecionando, pelo quarto ano seguido, uma cadeira de pós-graduação em "engenharia de software para fábricas de software livre" [www.fabricadesol.com], que tem tido um razoável sucesso e onde tais questões são discutidas. Estas discussões têm também influenciado o c.e.s.a.r, empresas do Porto Digital, fazendo surgir até uma fábrica de software livre, a OXE [www.oxe.org.br], sob cujo processo e expertise foi feito o sistema de informação da Pitang [www.pitang.com.br], todo desenvolvido sobre plataformas de código aberto.

Nossa parceria com a Microsoft não especifica que status terá o código que de lá sair. A Microsoft, por sua vez, investe cada vez mais em software e padrões abertos. De minha parte, acredito que esta questão, do ponto de vista da infra-estrutura, serviços e aplicações de computação, comunicação e controle, é cada vez mais periférica: Google, Yahoo, MSN, eBay, Amazon, salesforce.com e sugarcrm.com mostram que software é cada vez mais serviço do que produto, mais assinatura do que licença [ou algum tipo dela, grátis]. Pena que isso não seja visto no Brasil, nem pela academia, nem pelas empresas e tampouco pelo planejamento estratégico do setor. O resultado é que perdemos a última década num debate peripatético sobre o status ontológico de software, enquanto a Índia, para citar um país apenas, realiza em exportações quase três vezes o tamanho do mercado brasileiro, sem se preocupar se o resultado é aberto ou fechado. Coisas do Brasil, diria Tom Jobim...

 

 

O senhor não demonstrou muito entusiasmo com a Lei de Inovação. Por quê?

Meira O tempo que a Lei de Inovação levou para ser regulamentada dá uma idéia das dificuldades que enfrentam as esferas de governo que vêm tentando promover mais inovação no setor empresarial, para torná-lo mais competitivo. Uma boa parte do texto da lei trata das instituições federais de ensino e pesquisa e seus funcionários, mas isso é claramente secundário quando visto no contexto mais amplo do país. Sem que haja, nas empresas, o contexto e condições para inovação, o efeito de qualquer mudança no setor acadêmico e de pesquisa, onde está quase a totalidade dos pesquisadores, será muito limitado.

Olhe para os EUA: o presidente Bush visitou o Silicon Valley em abril último para anunciar, no auditório da Cisco Systems, um investimento federal para que o país "continue" competitivo frente à China e Índia, de US$ 136 bilhões em 10 anos, dos quais US$ 86 bilhões em redução de impostos para investimento empresarial em educação e pesquisa. A prioridade são as empresas, e isso num país cujo déficit orçamentário é astronômico.

Mesmo estando fora dos grandes eixos do Sul e Sudeste, onde se concentra a produção científica brasileira, o c.e.s.a.r é uma referência em TIC. O senhor já disse em outras entrevistas que valoriza a "origem na periferia" que o Centro tem. Que diferença faz interferir na realidade a partir da periferia?

Meira Os núcleos situados nos principais centros de pesquisa e inovação, devido às tensões geradas pelos mercados que atendem, acabam tendo menos liberdade para inovar, para criar. Na periferia, onde tudo é mais difícil, as possibilidades criativas podem ser maiores. O c.e.s.a.r foi construído quase a partir do zero, como centro de inovação, pois não tínhamos modelos para nos espelhar nem na região, periférica no país, nem no país, periférico no mundo.

Eu acho que o Brasil tem que assumir mais este seu caráter periférico. Temos que assumir que não estamos competindo com Europa, EUA, Japão, Coréia e, agora, com China e Índia. Não soubemos ou não quisemos fazer as escolhas que nos colocariam na classe desses países. Nosso espaço é na periferia, onde não conseguimos, no mais das vezes, identificar África do Sul, Indonésia, Malásia, Tailândia, Filipinas, México como os competidores que eles realmente são.

Apesar do potencial do mercado interno e da comprovada expertise que temos no desenvolvimento de soluções em software, o Brasil segue com déficit comercial na área. O que falta para o país se transformar num pólo exportador como a Índia, por exemplo?

Meira A primeira coisa que falta é atitude. Salvo raríssimas exceções, as empresas brasileiras de software são locais e isso as circunscreve ao Brasil. A infra-estrutura brasileira nas áreas legal, fiscal e trabalhista é confusa, chegando a ser impeditiva em alguns negócios que exigem entendimento e inserção em janelas de oportunidade que às vezes estão abertas apenas por meses. No entanto, abrir uma empresa no Brasil leva muitos meses; empresas de software são negócios de alto risco que precisam ser fechados quando não dão certo. Fechar uma empresa, no Brasil, leva anos... neste ponto o Brasil é mesmo um grande Portugal. Lá, o governo acaba de enviar ao parlamento 333 medidas para tornar o país mais competitivo, pois sabe que está perdendo espaço e tempo na Europa e no mundo. Talvez o Brasil devesse olhar tal esforço de perto e fazer algo parecido aqui, urgente.

Outro problema, ainda mais fundamental, é que a nossa formação básica de matemática, lógica e física, para todas as áreas, deixa muito a desejar. Disso resulta um Brasil que não conseguirá, tão cedo, competir com a Índia em serviços e tampouco com a China em produto. O Brasil precisa achar sua classe e seus competidores, para além das commodities minerais e agrícolas, se quiser ter algum sucesso fora destas áreas.

O c.e.s.a.r tem resultados positivos numa área bastante problemática no Brasil, que é a atração de capital de risco em tecnologia. Qual é a estratégia adotada?

Meira O capital "de risco" em países como o Brasil é muito arisco... porque compara seu investimento empreendedor, na formação de negócios cuja base são tecnologias ainda não testadas em larga escala no mercado, portanto sujeito a uma alta taxa de mortalidade, aos títulos do governo, garantidos com os maiores juros reais do mundo, graças a um país que não resolve suas pensões e aposentadorias, com desequilíbrio do setor público, enfim, que está fora de fase com o mundo lá fora, onde há muito mais investimento, normal e de risco. Só que, pelo que rezam os ministros da fazenda quando assumem o cargo [esquecendo o que diziam antes], todos os sinais macroeconômicos nacionais estão verdes e tudo deveria estar bem. Ora, a macroeconomia não cria empresas, não faz o país crescer, não gera empregos, renda e muito menos sua distribuição. Neste contexto, a receita do c.e.s.a.r é ter um processo certificado [ISO9001:2000] de criação de novos negócios a partir de demandas de mercado já identificadas e com projetos já realizados para atendê-las. Em suma, reduzimos o risco através do aumento do controle do processo de criação de negócios, pela formação e certificação das equipes envolvidas, pela melhoria do foco no mercado, dando preferência à inovação do tipo pull (do mercado para a inovação) em relação modo push (dos laboratórios para o mercado)... ou seja, sabendo que os investidores de risco não são tão de risco assim, diminuímos o risco.

 

 

O governador de São Paulo criou este ano, por decreto, o Sistema de Inovação Paulista que inclui parques tecnológicos em várias regiões do estado conforme suas vocações. Pernambuco criou o Porto Digital em 2000, com resultados favoráveis já que suas empresas compõem 3,5% do PIB do estado. Como o senhor vê esses sistemas de inovação?

Meira A importância de tais sistemas é articular os mais diversos eixos dos ciclos de inovação. No Recife, o Porto Digital articula, motiva e, em alguns casos, é mola propulsora do processo, mas não é preciso pensar muito para entender que os atores principais são as empresas, na iniciativa privada, na sua eterna luta pela sobrevivência. Creio que o maior desafio de uma empresa é sobreviver e, para tal, as maiores oportunidades para inovar não estão, apesar do senso comum em contrário, em insumos tecnológicos oriundos de P&D.

O principal locus de inovação, em uma empresa, é seu modelo de negócio e as competências, capacidades e conexões com as quais ele é implementado. É claro que não se faz empresa de tecnologia sem tecnologia, mas é bom lembrar que o verdadeiro teste da inovação é o mercado, são as mudanças de comportamento dos produtores e consumidores de tecnologia, e não a tecnologia em si, ou seus agentes. Os sistemas locais de inovação serão tão mais importantes quanto mais pessoas e empresas entenderem isso. As "pequenas empresas" de base tecnológica, em um sistema local de inovação, são pontos de partida e não o conjunto de chegada.

A Capes aprovou o mestrado profissional em engenharia de software que será oferecido pelo c.e.s.a.r. Não há conflito de interesses com a UFPE?

Meira A UFPE é um entre 19 centros de formação de capital humano em tecnologias da informação e comunicação do grande Recife, onde temos também a Universidade de Pernambuco (UPE), para a qual a Capes aprovou um mestrado acadêmico, tocado por um grupo de educadores e pesquisadores competentes. Nós submetemos à Capes uma proposta de mestrado profissional inovadora, baseada na prática real de engenharia de software dentro de um centro de inovação. Entendemos que as pós-graduações clássicas, dos muitos centros de qualidade acadêmica que há no Brasil, não atendem esse mercado. Ela não se opõe ou se sobrepõe a qualquer outra já existente, mas as complementa, cria mais diversidade institucional em um país que precisa de uma verdadeira revolução na construção de habilidades para competir no mercado mundial.