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Inovação Uniemp

versão impressa ISSN 1808-2394

Inovação Uniemp v.2 n.3 Campinas jul./ago. 2006

 

 

As informações geoespaciais e o desafio do desenvolvimento

 

 

JOSÉ MONSERRAT FILHO

 

 

"Os países em desenvolvimento precisam construir rapidamente sua capacidade nacional para enfrentar os problemas locais específicos na melhor relação custo-benefício. Isso clama por forte apoio público, baseado em ampla consciência pública do potencial de aplicação das tecnologias espaciais, seus benefícios e custos. Importante também é assegurar o desenvolvimento de recursos humanos para gerar uma corrente regular de jovens cientistas e tecnólogos em quem se possa confiar a responsabilidade pelas aplicações das tecnologias espaciais na realização das tarefas nacionais identificadas", escreveu, em 2000, U. R. Rao, membro da Comissão Espacial da Índia.

São idéias saudáveis, mas não é fácil aplicá-las. A Índia parece ter conseguido, tantos são hoje os êxitos de seu programa espacial. No Brasil, certo, já fizemos muito. Porém, poderíamos ter feito muito mais. Perdemos muito tempo e desperdiçamos valiosas competências. Nos países subdesenvolvidos, em geral, os obstáculos são imensos — e os erros também —nessa e noutras áreas estratégicas. Não se abre a possibilidade de alternativas. Não se fomenta o pensamento criativo.

Daí que "após o prolongado período de destruição de capacidades, a grave situação social e econômica dos países menos desenvolvidos, quase sem exceção, exige o início urgente de uma fase de criação. O estabelecimento e sustentação de oportunidades para o aprendizado, a mobilização e a ampliação de capacitações deveriam estar no centro de novas estratégias e políticas públicas e privadas voltadas para promover capacidade de adquirir e usar o conhecimento". É o que recomendam Helena Lastres, José Cassiolato e Ana Arroio, em Conhecimento, sistemas de inovação e desenvolvimento, de 2005.

Isso vale para o universo dos dados geoespaciais — gerados por diversos satélites que registram praticamente todos os aspectos da Terra e, portanto, de cada país. São informações regulares sobre riquezas e recursos naturais (solo, subsolo, relevo, rios, mares, florestas, cultivos), suas mudanças e seu potencial de uso. Em 20 anos, elas passaram de sofisticados meios de espionagem a instrumentos imprescindíveis a qualquer plano nacional de desenvolvimento.

Milton Santos, em A natureza do espaço, edição de 2006, viu bem: "A técnica e a ciência presentearam o homem com a capacidade de acompanhar o movimento da natureza, graças aos progressos da teledetecção e de outras técnicas de apreensão dos fenômenos que ocorrem na superfície da terra. As fotografias por satélite retratam a face do planeta em intervalos regulares, permitindo apreciar, de modo ritmado, a evolução das situações e, em muitos casos, até mesmo imaginar a sucessão dos eventos em futuros períodos. Os radares meteorológicos, cada vez mais poderosos e precisos, são colaboradores preciosos nessa tarefa, porque permitem que as previsões se realizem a intervalos ainda menores. Cientistas puros e aplicados valem-se desses instrumentos de acompanhamento e previsão para aperfeiçoar o conhecimento das leis da natureza física, antever o respectivo comportamento e, de posse dessas preciosas informações, alcançar uma implementação conseqüente das atividades econômicas e espaciais".

Realmente, a capacidade nacional de usar dados geoespaciais transformou-se em condição sine qua non para a tomada de decisões racionais e consistentes, imprescindíveis à elaboração e realização dos planos de desenvolvimento pelo governo e pelas empresas privadas.

Alguns países ricos detêm hoje as mais avançadas tecnologias de observação do mundo inteiro. E sabem de cada país como ninguém.

Os países mais pobres da Ásia, por sua vez, almejam uma infra-estrutura regional de dados geoespaciais para uso comum. O vice-ministro de Recursos Naturais e do Meio Ambiente do Vietnã, Dang Hung Vo, afirmou, na 26ª Conferência Asiática de Sensoriamento Remoto (Hanói, novembro/2005), que o projeto "deve atender à necessidade de monitorar o uso dos recursos naturais, a qualidade ambiental e os desastres causados tanto pela natureza como pelos seres humanos". Mas ressaltou: "Precisamos de imagens bem detalhadas da superfície da Terra, sem exigir qualquer precisão geométrica". Os países carentes dispensam o luxo da alta resolução.

A Comissão Econômica das Nações Unidas para a África (Uneca) considera "mandatory" (obrigatório) em todos os países africanos a criação de infra-estrutura nacional de dados espaciais, que permeiem cada aspecto da vida social e estejam ao dispor de quem deles precise, quando e na forma em que sejam úteis à tomada de decisões.

Sensível a uma questão de tão amplo interesse, o Brasil está propondo às Nações Unidas a adoção do princípio de que todos os países devem ter competência para receber, tratar e usar dados geoespaciais como ferramenta indispensável à promoção do desenvolvimento nacional. O projeto brasileiro "Sobre a Cooperação Internacional para a Construção de Capacidade Nacional no Uso de Informações Geoespaciais em Benefício do Desenvolvimento" foi revelado à Subcomissão Jurídica do Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço (Copuos, na sigla em inglês), reunida de 3 a 14 de abril último, em Viena, Áustria. A apresentação formal se dará na 49ª Reunião do Copuos em junho.

A idéia é fomentar a disseminação de acordos e mecanismos de cooperação internacional para a construção da referida infra-estrutura, em cada país — sobretudo, claro, nos países em desenvolvimento. A cooperação internacional pode desempenhar importante papel nessa conquista. Se o Brasil foi o segundo país do mundo, depois do Canadá, a ter uma estação de recepção de dados do satélite Landsat, em 1972, deve isso a um acordo de cooperação com os EUA. Hoje, Brasil, China e Índia, além dos países desenvolvidos, podem contribuir de forma eficaz na proliferação de infra-estruturas nacionais de dados geoespaciais.

Se todos os países — ou quase todos — passarem a ter capacidade de receber, tratar e usar informações geoespaciais, isso certamente há de gerar ampla e inédita cultura global de uso desses dados. Cultura que não será necessariamente uniforme e padronizada, mas vária e, portanto, mais rica, já que apoiada na competência nacional, voltada, sobretudo, para especificidades e demandas de cada país.

 

 

O resultado, com certeza, será um aumento do mercado mundial de dados geoespaciais, como ainda não se viu desde o início das atividades civis de observação da Terra por satélite, nos anos 80. Parece evidente haver hoje, entre a maioria dos países, um mercado de dados geoespaciais pouco contemplado ou simplesmente ignorado. O atendimento desse grande mercado potencial poderá alavancar, por sua vez, as indústrias produtoras de aplicativos espaciais.

Se "freqüentemente, se diz que o mercado de dados espaciais é imaturo", isso se deve, em boa parte, a que, para um mercado eficiente, é preciso "perfeita consciência por parte dos compradores", como sustentaram Mukund K. Rao, diretor da agência espacial da Índia, e K. R. Shidhara Murthi, diretor da Artrix, a maior empresa espacial indiana, na II Conferência Asiática de Direito Espacial (Bangalore, Índia, junho/2005). De fato, um mercado mundial maduro nesta área de ponta exige compradores competentes que conheçam bem as necessidades e demandas de seus países. A infra-estrutura nacional para o uso de dados geoespaciais pode formar essa competência.

Pode-se perguntar: os sistemas internacionais e regionais de dados geoespaciais não deveriam substituir os nacionais? Penso que todos os sistemas são extremamente importantes, mas a competência nacional é insubstituível. Ela diz respeito ao conhecimento, à experiência e à escolha de cada país — os alicerces intransferíveis de seu progresso social. Mas isso em nada reduz a necessidade de entrosamento dos sistemas para garantir maior segurança e desenvolvimento mais eqüitativo e impetuoso a toda a comunidade de nações.

 

José Monserrat Filho é editor do Jornal da Ciência (publicação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC), jurista, vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), membro da Diretoria do Instituto Internacional de Direito Espacial e do Comitê Espacial da International Law Associacion (ILA).