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Inovação Uniemp

versão impressa ISSN 1808-2394

Inovação Uniemp v.3 n.1 Campinas jan./fev. 2007

 

 

Águas: Brasil precisa difundir tecnologias e ampliar políticas públicas

 

 

por GABRIELA DI GIULIO

 

 

INOVAÇÃO JÁ DISPONÍVEL NÃO CHEGA A SE CONCRETIZAR; FALTAM AÇÕES E POLÍTICAS EFETIVAS PARA PLANEJAR A DEMANDA FUTURA POR RECURSOS HÍDRICOS NO PAÍS

A disponibilidade de água para as populações, para o funcionamento industrial e para a atividade agrícola é um dos maiores desafios dos governos na atualidade. Trata-se de um bem precioso e escasso, que exige tecnologias para seu melhor aproveitamento, captação e para pôr fim ao desperdício. A gestão democrática de seu uso assim como a prática de estratégias de reaproveitamento de água, racionalização, redução dos efeitos da poluição e inovações em equipamentos e processos estão em foco, inclusive no Brasil, tido mundialmente como um grande reservatório de recursos hídricos. Ações como gestão participativa, comitês de bacias hidrográficas e legislação sobre o uso da água são políticas desejáveis; inovação em produtos mais econômicos e tratamento de efluentes completam a pauta do setor público e privado dedicado à pesquisa e desenvolvimento na área.

Diferentemente de alguns países europeus, como França, Alemanha e Inglaterra — onde a gestão das águas é eficiente e bem planejada — o Brasil ainda avança lentamente nessa questão, avalia o especialista e pesquisador José Galizia Tundisi. "Os comitês de bacia respondem às necessidades, mas ainda não estão totalmente instalados no país", explica Tundisi, que é presidente da Associação Instituto Internacional de Ecologia e Gerenciamento Ambiental (IIEGA) e integrante do Comitê Gestor do Fundo Setorial de Recursos Hídricos. Para ele, mais do que combater a noção de abundância, ainda muito presente no Brasil, é importante que se conheça a disponibilidade para se planejar, com base na futura demanda, o desenvolvimento nacional. "Os investimentos em pesquisa para resolver este gargalo ainda são poucos", lamenta. O governo federal, através do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos do Ministério da Ciência e Tecnologia, patrocina um estudo para cruzar as informações territoriais do Brasil com o planejamento de recursos hídricos, que sirva de subsídio para a criação de um Plano Plurianual a respeito da gestão nacional das águas.

 

CULTURA REATIVA

Investir na construção de políticas com foco pró-ativo, articulação entre os diversos segmentos da sociedade e fiscalização eficiente parece ser a saída para evitar a escassez de recursos hídricos no futuro. "As ações adotadas no Brasil ainda têm como foco principal amenizar as conseqüências de eventos drásticos, como perfuração de poços, construção de cisternas e açudes, revitalização de mananciais hídricos, piscinões. Essas estratégias são pontuais, reativas e desconectadas de um processo integrado de gestão", critica Marta Tocchetto, pesquisadora da Universidade Federal de Santa Maria.

Um exemplo dessa cultura ambiental reativa — que ainda "gerencia o leite derramado", nas palavras da pesquisadora — é o acidente ambiental ocorrido no Rio dos Sinos (RS), em outubro de 2006. A região possui o mais antigo Comitê de Bacias em atuação no país, fundado em 1988, e mesmo assim não conseguiu evitar o episódio que se tornou evidente por conta da enorme mortandade de peixes, amplamente divulgada na mídia, resultante da poluição crônica do rio.

 

 

Enfrentar a enorme taxa de desperdício de água no país — que gira em torno de 50% daquilo que se consome — é outro desafio apontado por especialistas da área. Uma saída seria cobrar pelo uso, o que já ocorre em algumas regiões gerenciadas por comitês das bacias hidrográficas, como as dos rios Paraíba do Sul (desde março de 2003) e Piracicaba, Capivari e Jundiaí (desde janeiro de 2006). A precificação faz com que, principalmente os grandes usuários, invistam em economia evitando, por conseguinte, o desperdício, assinala Antônio Félix Domingues, coordenador-geral da assessoria de imprensa da Agência Nacional de Águas (ANA). Para ele, a Companhia Siderúrgica de Volta Redonda, que capta água do rio Paraíba do Sul, é um bom exemplo: antes de pagar pelo recurso, a empresa captava 10 metros cúbicos de água por segundo do rio; com a cobrança, os investimentos feitos para reaproveitamento e a própria pressão por diminuir o uso e, assim, fortalecer a imagem da empresa, a captação caiu em torno de 40%.

"São os próprios comitês que decidem se vão ou não cobrar pelo uso da água, como vão fazer isso e como estabelecerão os preços", acrescenta Domingues. O dinheiro arrecadado pelo comitê é investido em ações diversas, como tratamento de esgoto, despoluição, recuperação de matas ciliares, educação ambiental. Em sua opinião, o pagamento pelo uso da água teria impacto, inclusive, na prevenção de inundação e enchentes nas cidades. "Na França, por exemplo, há cobrança também pela área impermeabilizada. Ou seja, a partir do momento em que se impermeabiliza um local há uma compensação financeira por isso. Isso poderia também ser feito no Brasil," considera o especialista.

O geólogo Gerôncio Rocha, do Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado de São Paulo (DAEE), destaca outro ponto nesse quadro, que são as perdas na distribuição. Há carência de investimentos em manutenção e conservação da rede pública visando evitar perdas de água no sistema. Segundo Rocha, vazamentos, fugas, conexões prediais são responsáveis por médias elevadas de perdas, que superam 30%.

 

TECNOLOGIAS DE REUSO

Para um futuro sustentável, o Brasil precisa avançar em práticas inovadoras em pelo menos duas frentes: tratamento de esgotos e efluentes e reutilização da água. No Brasil, estima-se que apenas 20% dos esgotos municipais são tratados. "Enfrentar esse problema depende de gestão e tomada de decisão", afirma Carlos Tucci, pesquisador do Instituto de Pesquisa Hidrológica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e ex-secretário do Fundo Setorial de Recursos Hídricos. "O país necessita de um programa de longo prazo com metas definidas de investimentos e com distribuição dos custos reais para a sociedade".

Para o coordenador da ANA, este é um grande entrave pois, há 20 anos, o país tenta implementar um marco regulatório para o setor. "Se o tratamento de esgoto deve ser algo público ou privado é o menos importante. Na minha opinião, precisamos buscar eficiência e garantir subvenção para comunidades pobres e municípios pequenos", argumenta.

Estudos da ANA apontam a necessidade de o Brasil investir, nos próximos 10 anos, entre R$ 100 e 120 bilhões para garantir uma condição de saneamento adequada. Quantia que o governo, sozinho, não tem condições de arcar. "Teremos de contar com a iniciativa privada, principalmente nas regiões metropolitanas. E os próprios municípios terão de agir como agentes de regulação para fazer a fiscalização do tratamento de esgoto e dos serviços de abastecimento de água", propõe Domingues.

 

 

 

 

IRRACIONALIDADE NAS POLÍTICAS

Para o pesquisador Elmo Rodrigues, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), "à medida que a poluição vai comprometendo o abastecimento de água, tornam-se imperativos os investimentos na coleta e tratamento de esgoto". Para o pesquisador do Instituto Tecnológico de Aeronaútica (ITA), Wilson Cabral, especialista em economia dos recursos naturais, também falta criatividade e bom senso. "Diversos estudos mostram a relação de causa e efeito da poluição das águas sobre a saúde humana. Porém, não há um caso substantivo em que o orçamento da saúde tenha sido direcionado para o tratamento de esgotos", critica.

Em 2001, sua equipe fez uma pesquisa sobre custos do tratamento de efluentes de alguns municípios paulistas e da água para abastecimento, cuja captação é no mesmo rio em que lançam seus esgotos. O estudo mostrou que o investimento no tratamento de esgotos seria compensado pela redução no custo do tratamento de água, com capacidade de auto-pagamento em apenas um ano. "Para isso acontecer, seria necessário que o prefeito do município a jusante aceitasse investir parte de seu orçamento no tratamento de esgoto de um município a montante. É a racionalidade da bacia hidrográfica. Mas como transpor esta racionalidade para a administração municipal?", questiona.

 

 

OPÇÕES MAIS BARATAS

A tecnologia de tratamento de efluentes já apresenta desenvolvimento satisfatório, segundo Rodrigues, porém, é preciso pensar em alternativas menos custosas e mais simples, como o uso de lagoas de estabilização, sobretudo em cidades de porte médio e pequeno, que possuam áreas planas e disponíveis para esse tipo de técnica.

Uma outra sugestão refere-se ao tratamento simplificado do esgoto para utilização do produto final em lavouras de cana-de-açúcar. Segundo o coordenador da ANA, seria possível desenvolver para essas regiões produtoras um modelo que, ao invés de tratar o esgoto seguindo padrões de alta qualidade, trate os efluentes de forma parcial, preservando nutrientes como fósforo e nitrogênio, considerados necessários para o cultivo das lavouras.

Tecnologias de membrana, ultrafiltração, eletrodiálise, osmose reversa são alguns dos métodos usados para tratar águas cujas exigências de qualidades são rigorosas. "Não tenho a menor dúvida de que, no tocante à hidráulica e hidrologia, nossas universidades e centros de pesquisa estão entre os mais preparados do terceiro mundo para fornecer os subsídios técnicos para a gestão dos nossos recursos hídricos", acredita o presidente da Associação Brasileira de Recursos Hídricos (ABRH), Rui Carlos Vieira da Silva.

 

 

No Centro de Química e Meio Ambiente do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) foi desenvolvido um estudo que permite transformar resíduos de carvão gerados por termoelétricas em um material capaz de tratar águas e efluentes industriais. O trabalho resultou de uma parceria entre o Ipen e a Usina Termelétrica a Carvão de Figueira, localizada no Paraná.

No estudo, a pesquisadora do Ipen, Denise Fungaro, utilizou zeólitas — um material absorvente de baixo custo — para descontaminar a água proveniente de um processo industrial de galvanoplastia contendo altos níveis de zinco. Os resultados apontaram para uma média de 88% da remoção de zinco na água, que se manteve dentro dos limites permitidos pela legislação para descarte no meio ambiente.

A Usina Termelétrica de Figueira fica numa região denominada Vale do Peixe, onde está situada a faixa oriental da Bacia do Paraná. Ali estão os aqüíferos Serra Geral e Paleozóico. A contaminação deles pode atingir de forma indireta o Aqüífero Guarani, considerado a maior reserva subterrânea de água doce potável do mundo.

 

TRATAMENTO COM QUALIDADE

Preocupada com a desinfecção adequada da água, a pesquisadora Jeanette Beber de Souza, da Escola de Engenharia de São Carlos da USP, desenvolveu experimentos que comprovam que a utilização de ozônio, ácido peracético, ou um processo combinado envolvendo ozônio e cloro, podem ser alternativas ao uso do cloro no tratamento de água para consumo humano. As pesquisas mostraram que essas substâncias têm, em menor ou maior escala, poder de oxidação e inativação de bactérias, protozoários e vírus e são apropriadas para tratamentos com essa finalidade.

Mais do que pesquisar novas substâncias para o tratamento de água, o estudo desenvolvido por Jeanette tem como objetivo verificar e evitar a formação de subprotudos oriundos do processo de desinfecção — vários deles suspeitos de causarem câncer nos seres humanos. "É importante observar que não existe desinfetante 'ideal' para toda e qualquer situação. O que deve ocorrer é a avaliação criteriosa e idônea sobre as diversas tecnologias e processos de desinfecção existentes e escolher aqueles mais eficazes às finalidades a que se destinam".

 

 

Se tratar esgotos e garantir uma água de qualidade são preocupações que norteiam instituições de pesquisa e políticas públicas, investir em tecnologias para o reuso da água também é considerado fundamental por especialistas da área. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), por exemplo, existe o Núcleo Reuso de Águas, que conta com apoio federal e estadual para desenvolvimento de projetos, e o Laboratório de Tecnologia Mineral e Ambiental (LTM), atento também à necessidade de pesquisas para o reaproveitamento de água. O pesquisador Jorge Rubio, do LTM, coordenou pesquisa que gerou um equipamento capaz de reaproveitar até 80% de água utilizada. A inovação atende usuários de grandes quantidades de água diárias, como postos de gasolina, empresas de ônibus e aviação, transportadoras e revendas de automóveis.

 

 

O equipamento alia técnicas de floculação pneumática em linha e separação por flotação. Segundo Rubio, a idéia foi enfrentar o problema de reaproveitar a enorme quantidade de água gasta na atividade de lavagem de veículos a partir de tecnologia já conhecida para separar águas oleosas contendo sólidos em suspensão, em estudos e projetos desenvolvidos para a Petrobras em plataformas e refinarias. Ao usar reagentes desestabilizantes de dispersões sólidas e emulsões e microbolhas que, uma vez aderidas, flutuam as partículas poluentes, o equipamento é capaz de limpar a água.

Compacto, com elevada capacidade e eficiência de tratamento e de baixo custo, o equipamento chamado Etar-Aquaflot já é aplicado em algumas empresas de ônibus, na região Sul. "O que dificulta a ampla difusão da tecnologia, principalmente nos postos de combustíveis, é a falta de uma legislação (estadual-municipal) obrigando o tratamento e reuso de águas de lavagem de carros e, como muitas empresas usam águas de poço, isso não onera os custos gerais da atividade", diz o pesquisador. Para ele, o principal desafio é incorporar a idéia de reuso à cultura dos brasileiros. Algumas dúvidas inibem a aceitação, principalmente quanto à qualidade da água. "Existe o receio, no caso dos postos de lavagem, de que a água reciclada não seja tão eficaz na limpeza ou venha a danificar o veículo."

Para comercializar o equipamento, que já foi patenteado, a UFRGS fez uma parceria com uma empresa, a Aquaflot, formada por ex-alunos do LTM. Até agora, foram desenvolvidos três modelos de tamanhos diferentes, com preços que variam entre R$ 15 mil e R$ 64 mil. O contrato entre a empresa e a UFRGS prevê o pagamento de royalties de 1% para a universidade sobre o faturamento bruto com a venda de cada equipamento. Além disso, segundo Rubio, há um protocolo de intenções assinado entre a Aquaflot e o LTM garantindo o repasse de 1% do faturamento bruto da empresa para a UFRGS. Com o acordo, ganham os dois lados. "Para a Aquaflot, o trabalho conjunto com o laboratório permite a atualização dos conhecimentos e o contato permanente com uma equipe altamente qualificada", explica Rubio.

 

EQUIPAMENTOS PROJETADOS PARA ECONOMIZAR

No Brasil começa a se expandir o mercado para a produção de bacias sanitárias mais econômicas. As mais modernas utilizam seis litros de água por descarga; os modelos antigos — ainda presentes na maioria das residências —usam 30 litros. O que comprova, para Antonio Felix Domingues, que o maior problema não está na falta de tecnologia, e sim na sua aplicação prática. "É preciso criar mecanismos para financiar o acesso e a aplicação dessas tecnologias", propõe o coordenador da ANA.

Um estudo feito recentemente pela Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Unicamp e divulgado na revista Ciências de Ambiente mostra que no Brasil seria preciso trocar cerca de 100 milhões de bacias sanitárias que gastam em média de 30 a 40 litros a cada descarga. Numa residência onde vivem quatro pessoas, com uma média de 16 descargas por dia, a economia mensal com as bacias sanitárias de seis litros chegaria a 80% (14.440 litros de água, com bacias antigas, contra 2.880 litros, com as novas bacias de seis litros).

O mercado oferece produtos econômicos, o que falta é garantir, a exemplos de outros países, que tal tecnologia seja implementada. Nos Estados Unidos, por exemplo, o governo criou um programa para substituir as bacias sanitárias pelas mais econômicas, com a redução de impostos e descontos de tributos para empresas e consumidores e fez uma campanha intensiva para a troca. No México, atitude similar foi adotada.

A empresa Deca, líder no mercado em metais sanitários e uma das principais no setor de louças sanitárias, produz bacias de seis litros e as com caixa acoplada com duplo acionamento, entre outros produtos considerados econômicos. Para isso, conta com três laboratórios de desenvolvimento e reliability e um orçamento em P&D da ordem de US$ 2 milhões por ano. "Desde 1995, a empresa se preocupa mais intensamente com o meio ambiente", diz Marco Milleo, gerente de desenvolvimento de produtos da Deca. Para ele, é necessário que no Brasil se adotem práticas de incentivo para que empresas do setor criem mais produtos econômicos e se consiga, por exemplo, neutralizar a concorrência com produtos mais baratos de origem asiática.