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Conhecimento & Inovação

versión impresa ISSN 1984-4395

Conhecimento & Inovação v.5 n.3 Campinas jul./sept. 2009

 

ENTREVISTA
RICARDO GAZZINELLI

 

Brasil: empresas precisam entrar na produção de vacinas humanas

 

 

Cristina Caldas

 

 

Vida em trânsito é uma boa maneira de descrever a rotina de trabalho de Ricardo Tostes Gazzinelli, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Faculdade de Medicina da Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos. Entre idas e vindas Brasil-EUA, grandes projetos de pesquisas em vacinas para doenças como Chagas, leishmaniose, toxoplasmose e malária são coordenados pelo cientista.

Em entrevista à revista Conhecimento&Inovação, Gazzinelli destacou que atualmente as vacinas são desenvolvidas de maneira muito mais racional. Defendeu que o Brasil precisa investir em desenvolvimento e produção de vacinas humanas, pois a pesquisa básica avançou muito, e que o setor privado precisa urgentemente ser incentivado a entrar na área. Gazzinelli destacou que a gripe suína mostrou que o Brasil não está pronto para enfrentar uma pandemia de influenza, pois com a estrutura atual não seria possível produzir doses suficientes da vacina para a população brasileira sem comprometer a produção da vacina sazonal.

Ao final da entrevista, Gazzinelli recebeu a notícia que ele acabara de ser agraciado com o Prêmio de Pesquisa Básica Marcos Luiz dos Mares Guia, concedido pela Fapemig.

O senhor vem trabalhando há anos com o desenvolvimento de vacinas para várias doenças, dentre elas doença de Chagas, malária, toxoplasmose e leishmaniose. Conte-nos um pouco da sua jornada.

Ricardo Gazzinelli A base das minhas pesquisas tem sido estudar a imunologia da infecção por protozoários, buscando entender como o sistema imune funciona durante essas infecções e, a partir daí, fazer um desenvolvimento mais racional do que se deseja com uma vacina. Recentemente, estamos tentando ver a importância da imunidade inata, conjunto de reações imunológicas "prontas" que não dependem da exposição prévia ao agente infeccioso. Sabe-se hoje que é a imunidade inata que faz uma vacina ficar efetiva, não pela especificidade da resposta imune, mas pela habilidade desse tipo de resposta em ajudar a potencializar a resposta imune específica. Todos esses estudos tinham um cunho básico, e não um objetivo imediato para desenvolver vacinas. Com a aquisição de toda tecnologia de DNA recombinante, incluindo os vetores virais, é possível fazer formulações mais eficazes. Por exemplo, com a indução da resposta específica de linfócitos T CD8, passamos a gerar formulações que são mais eficazes na proteção dessa classe de patógenos, em modelos experimentais.

Devido a minha formação inicial em imunoparasitologia, e pela inexistência de vacinas eficazes para boa parte dessas doenças, elegemos trabalhar com vacinas para essas doenças, conhecidas como negligenciadas, por falta de interesse comercial das indústrias. Em parte por não serem problemas de saúde na Europa e na América do Norte. Agregamos um grupo que incluía desde imunologistas, bioquímicos, além de uma indústria farmacêutica interessada em programas de vacinas. Evoluímos em vários aspectos.

Tanto que vocês colocaram uma vacina contra leishmaniose visceral canina no mercado.

Ricardo Gazzinelli Foi uma vacina que tivemos rápido sucesso, a partir de uma cooperação com a Hertape-Calier (HC), indústria brasileira responsável por grande parte da produção de vacinas veterinárias em nosso país. Após experimentos em modelo experimental de camundongos, a UFMG fez a transferência de tecnologia para a HC, que cuidou de elaborar sua formulação final, testes clínicos em cães, aprovação nas agências regulatórias e produção em boas práticas de laboratório. Houve um investimento aproximado de R$ 20 milhões para chegar ao produto final. A nossa experiência serve como modelo de interação universidade e iniciativa privada. Foi uma parceria de sucesso, sem a qual não teríamos chegado a um produto.

 

 

Como surgiu a ideia de criar o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Vacinas (INCTV)?

Ricardo Gazzinelli O INCTV começou há quatro anos com o Instituto do Milênio de Tecnologias em Vacinas, em cima de três expectativas: entender mecanismos imunológicos envolvidos na resistência a patógenos; adquirir metodologia de ponta para o desenvolvimento de vacinas recombinantes, definidas molecularmente; e inovação tecnológica. Conseguimos agregar grupos de pesquisa de ponta, no Brasil, envolvidos nas áreas, pesquisadores de diferentes formações, pensando: o que é importante para se fazer uma vacina hoje? Do ponto de vista imunológico, tecnológico e na transição da pesquisa e desenvolvimento em produto. Somos aproximadamente 30 pesquisadores distribuídos pelo Brasil, com sede no Centro de Pesquisa René Rachou, daFiocruz, em Belo Horizonte. O vice-coordenador, Maurício Rodrigues, fica na Universidade Federal de São Paulo. Quando pedimos a renovação do projeto no ano passado, na chamada para os novos INCTs, procuramos agregar pesquisadores jovens, formados no exterior e no Brasil, e em estágio inicial da carreira, não só para estimulá-los, mas também para que agregassem novas tecnologias e conhecimentos ao grupo. Além de Chagas, leishmaniose, toxoplasmose e malária, estamos estudando, também, vacinas contra dengue, leptospirose e influenza.

O que as vacinas atuais têm de diferente, comparadas com as primeiras que entraram no mercado?

Ricardo Gazzinelli Se voltarmos na história, veremos que as primeiras vacinas consistiam na injeção de microorganismos vivos sem tratamento algum de inativação ou atenuação. Hoje, com todas as regulamentações, seria praticamente impossível aprovar um protocolo de imunização em larga escala nesses moldes. A principal diferença é que atualmente as vacinas são desenvolvidas racionalmente e não apenas empiricamente. Os objetivos hoje tendem a ser bem definidos, tanto do ponto de vista imunológico, quanto do tecnológico, de construir e gerar uma vacina quimicamente definida. A tecnologia evoluiu enormemente, sabemos as funções de cada componente da vacina, temos formas de selecionar os antígenos mais eficazes. Uma área que evoluiu muito também foi a dos adjuvantes imunológicos, componentes da vacina capazes de ativar a imunidade inata e favorecer que a resposta imune celular se desenvolva de uma forma ou de outra. Hoje, por exemplo, dispomos de vírus defectivos, os quais apesar de infectarem as células, não conseguem gerar novas partículas virais. Apesar disso, eles são capazes de expressar o antígeno de interesse nas células infectadas. Acho que com toda a tecnologia disponível hoje, precisamos pensar em vacinas absolutamente definidas, sem risco para os pacientes, e que tenham um bom grau de proteção.

A cada ano, aparecem novas vacinas contra as mais diversas doenças. Há aplicação excessiva de vacinas atualmente?

Ricardo Gazzinelli Acho que não. Não acho que haja essa sobrecarga do sistema imune, que evoluiu com a capacidade de responder a inúmeros agentes. É preciso estar preparado para reagir rapidamente contra o maior número de organismos. Isso é muito claro em animais expostos a ambientes com uma maior carga microbiana, que respondem mais eficazmente a infecções, têm um sistema imune mais preparado para reagir, comparados com animais que vivem em ambientes assépticos. Sobre vacinar ou não, é preciso avaliar o custo/benefício do risco. É preciso considerar a quais doenças você está exposto. Se você mora na América do Norte não precisa se vacinar contra febre amarela, a não ser que você vá para a Amazônia. O número de vacinas deve aumentar, pois à medida que vacinas cada vez mais eficazes são desenvolvidas, a tendência é você não querer correr o risco de pegar aquela infecção.

E os efeitos colaterais? Nos EUA, há o medo de que as vacinas levem ao desenvolvimento de autismo. Em alguns lugares da Califórnia, 40% das crianças não foram vacinadas por medo da doença.

Ricardo Gazzinelli Eu teria que ver os trabalhos que levantaram essas hipóteses, avaliar a casuística, se foram feitos estudos com populações grandes para daí avaliar se esses supostos efeitos colaterais aparecem como perigo real. O que posso falar sobre efeito colateral de vacinas é quanto a formulação do adjuvante. É ele que causa dor. Especialmente o adjuvante que induz uma resposta imune celular, necessária para a proteção contra algumas das doenças que estudamos. Um dos grandes problemas na formulação de vacinas são adjuvantes que ao mesmo tempo sejam eficazes na indução da imunidade celular e, por outro lado, não causem os indesejados processos inflamatórios e dor no local da vacina. Essa é uma área quente na pesquisa em vacinas, está todo mundo correndo atrás de substâncias que não causem efeitos colaterais. Boa parte dos adjuvantes usados em animais para induzir uma resposta celular não é permitida para uso em humanos, pois causam febre, dor e outros efeitos colaterias. Até em vacinas veterinárias o uso dessas substâncias é bastante limitado. Grande parte das vacinas que estão no mercado são vacinas que induzem a produção de anticorpo e a pessoa fica protegida por ter anticorpo circulante na corrente sanguínea contra aquele determinado agente infeccioso. A indústria dominou muito bem essa tecnologia. Quando partimos para doenças que requerem uma proteção celular, como tuberculose e leishmaniose, começam as dificuldades. Além da indução da resposta adequada, tem também a questão da memória imunológica. A memória celular protetora é ainda muito questionável, muita gente discute que é preciso a persistência do antígeno, o que no caso de uma vacina implicaria na revacinação a cada ano.

Os investimentos têm sido suficientes para fomentar as pesquisas na área de vacinas?

Ricardo Gazzinelli O investimento em pesquisa no Brasil aumentou muito. A questão é que na área de inovação, quanto mais próximo você vai chegando do produto, mais caro fica. O desenvolvimento de uma vacina é caro, e tem grande risco de não funcionar. Para esse nível de desenvolvimento, penso que não temos o aporte financeiro, nem tampouco a infraestrutura suficiente. Não temos como transformar os laboratórios de pesquisa em laboratórios de desenvolvimento por várias razões, dentre elas, que o treinamento dos pesquisadores envolvidos em pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico é completamente distinto. Na minha opinião, desenvolvimento e inovação tecnológica só serão bem sucedidos se houver uma participação intensa e maciça de empresas e indústrias. No caso de vacinas para humanos, sinto falta do interesse do setor privado nacional.

 

 

E qual tem sido a postura dos laboratórios farmacêuticos em relação ao desenvolvimento e produção dessas vacinas no exterior? É uma área que a indústria tem interesse?

Ricardo Gazzinelli No mundo, as indústrias privadas dominam a área de vacinas. A grande maioria das vacinas humanas, como por exemplo influenza e HPV (do inglês, papiloma vírus humano), é produzida por indústrias privadas. No Brasil, vemos a mesma tendência no setor de vacinas veterinárias. É o caso da vacina contra raiva canina e aftosa bovina, que são produzidas pelo setor privado. Aqui eu não vejo empresas privadas se envolvendo com a produção de vacinas para humanos, e acho que isso precisa ser discutido e repensado. Veja o que estamos vivendo com a gripe suína. Será que as instituições públicas conseguem produzir doses suficientes da vacina? Uma parte da demanda certamente sim, mas e para a população brasileira? E se passarmos por uma pandemia, certamente não teremos doses suficientes. Além disso, a produção da vacina contra gripe sazonal também não pode parar.

 

 

O que seria necessário?

Ricardo Gazzinelli É preciso incentivar que o setor privado entre no negócio das vacinas humanas no Brasil. Posso listar um número enorme de vacinas altamente utilizadas que empresas privadas teriam interesse, como HPV, influenza e hepatite. Outro ponto importante é estar atento para as inovações desenvolvidas no Brasil. Nós, pesquisadores brasileiros, nos sentimos frustrados quando vemos que uma das indústrias públicas nacionais do ramo toma por opção o desenvolvimento de projetos que foram iniciados fora do páis com propriedade intelectual de institutos no exterior, ainda que para boa parte existam propostas com potencial similar ou até melhor em nosso país. Parece-me que é a velha ideia de que o que é feito aqui, não presta. Um produto criado e desenvolvido no nosso país por um grupo de cientistas é motivo de orgulho nacional. É uma decisão política de onde se quer investir, no processo intelectual criado no nosso país ou no exterior. Custa caro? Custa. Mais caro do que comprar tecnologia? Provavelmente, sim. Mas você está satisfeita de o Brasil estar comprando tecnologia para todas as vacinas humanas que estão no mercado? Eu não estou. O que espero de um país que está emergindo como uma das próximas potências econômicas é que ele seja capaz de andar com as próprias pernas, o que só vai acontecer quando ele começar a fazer tecnologia. O Brasil precisa desenvolver a tecnologia e, se possível, exportá-la . E isso requer um investimento grande, por parte das indústrias públicas e privadas do ramo. Se você olhar no site do INCTV (www.cpqrr.fiocruz.br/-inctv/BR/) há uma grande lista de reagentes criados por nossos pesquisadores, que deveriam estar sendo desenvolvidos como vacina e estão órfãos de empresas interessadas que poderiam colocar isso para andar. No caso da Fiocruz, está se criando o Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS), coordenado por Carlos Morel, com a ideia de captar projetos de inovação e fazer a transição entre os laboratórios de pesquisa e a indústria. Acho que essa transição de tecnologias geradas em nossos laboratórios para empresas da área precisa ser estimulada.

O Brasil vai produzir sua própria vacina contra o vírus H1N1?

Ricardo Gazzinelli Espero que sim. Hoje um dos grupos do INCTV, liderado por Alexandre Machado, domina a técnica de genética reversa [material genético do vírus é extraído e usado para identificar e isolar genes de interesse] para gerar vírus influenza em células. Temos gerado rotineiramente influenza recombinante [vírus modificados por engenharia genética e produzidos em células no laboratório]. Elaborou-se um projeto envolvendo várias instituições brasileiras com objetivo de conectar diferentes pontos de coleta de vírus. A nossa ideia é utilizar centros de referência para identificação dos vírus existentes no país para que possamos gerar vacinas, por genética reversa, para pandemias. O projeto está no momento em negociação entre a Fiocruz/Biomanguinhos e o Ministério da Saúde. Usando a mesma tecnologia, já foram desenvolvidos protótipos vacinais para a gripe aviária, o que era inviável utilizando a tecnologia de produção em ovos embrionados, uma vez que o vírus matava o embrião antes da vacina ser produzida. Além disso, protótipos vacinais para a gripe suína também foram gerados por essa tecnologia. Concluindo, a genética reversa é uma tecnologia muito mais potente, dinâmica e produtiva do que a comprada pelo Instituto Butantan de uma indústria privada do exterior. O Brasil precisa estar preparado, tanto o setor público quanto o privado. Estamos em uma posição que temos que explorar o maior número possível de tecnologias, aproveitando a decisão da Organização Mundial da Saúde de que, em casos de pandemia, não há questões de licenciamento. Estamos vivendo um momento muito rico, precisamos montar rapidamente no Brasil uma estrutura em que comecemos a identificar e monitorar os vírus circulantes, tanto veterinários quanto humanos, e estabelecer planos alternativos para a produção em larga escala de vacinas pandêmicas, atraindo a participação de diferentes empresas do setor público, assim como empresas privadas.